Artigo de Opinião

Algumas notas (extensas) para permitir um melhor desenvolvimento de um projeto de implementação de um sistema de BRT

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José Rolo Duarte, Project Director – Transportes - Grupo Quadrante
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José Rolo Duarte, Project Director – Transportes - Grupo Quadrante
Pretende-se com este artigo contribuir para o melhor desenvolvimento de projetos de implementação de sistemas de BRT (Bus Rapid Transit), transmitindo a experiência da Quadrante nessa área.

Um sistema de BRT (Bus Rapid Transit) é um sistema de transporte público rodoviário baseado em geral em autocarros articulados, que circulam em vias segregadas dos demais veículos. Deve ser desenhado para maximizar a eficiência do sistema e minimizar os atrasos. É um sistema que procura combinar a capacidade de transporte e a velocidade do metro com a simplicidade, elasticidade e nível de custo (de construção e de operação) de uma rede de autocarros. As organizações internacionais de transportes, tais como a ITDP, recomendam a classificação dos sistemas de BRT em quatro níveis ou padrões: básico, bronze, prata e ouro.

O primeiro sistema de BRT entrou em funcionamento em Curitiba no Brasil, em 1974. Existem hoje sistemas de BRT em funcionamento com sucesso em cerca de 30 países, distribuídos por todos os continentes. Desses, destacam-se os seguintes sistemas: Yichang (China), Rio de Janeiro, Curitiba e Belo Horizonte (Brasil), Buenos Aires (Argentina), Joanesburgo (África do Sul) e Bogotá (Colômbia).

Entende-se que a base inicial de qualquer sistema de BRT deve ser um estudo de procura e de mobilidade urbana desenvolvido sobre dados reais e concretos resultantes de trabalho de campo (inquéritos/contagens). Aos seus autores, devem preferencialmente ser dadas linhas orientadoras gerais de modo a que o resultado seja isento de vícios, opiniões e de posições não positivas. O mesmo estudo deve-se focar no serviço de BRT sem esquecer o sistema de alimentadores – o sistema de alimentadores é o sistema de transportes ou de acessos pedonais que permite que os utentes cheguem às estações de BRT – não esquecendo que as distâncias de percurso pedonal aceitáveis por parte da população variam consoante a realidade de cada geografia. O sistema de alimentadores não deve competir com o sistema de BRT, e os dois devem estar em simbiose. Nas situações em que o sistema de BRT vai ocupar o espaço de um sistema de transporte existente, substituindo-o o existente (muitas vezes do tipo informal e/ou precário/deficiente) pode ser reorientado para se tornar um alimentador do BRT, sendo essa possibilidade uma forma de facilitar a gestão dos diferentes stakeholders. É também este estudo que define as localizações das estações e as suas dimensões, e as rotas a percorrer.

De igual forma, é necessário um estudo de tráfego, ou seja, é necessário reorganizar a cidade em termos viários, de modo a que os restantes meios de transportes tenham uma interferência com o BRT adequada ao nível de serviço e de tempos de viagem pretendidos (no BRT), permanecendo ao mesmo tempo viáveis para o restante tráfego. Aspetos importantes desta vertente são sobretudo os pontos de cruzamento/interseção do BRT com os outros meios. A resolução dessas interseções pode em geral passar pelo desnivelamento inferior ou superior (difícil/dispendioso em geral de concretizar em meio urbano), ou por semaforização (com prioridade para os autocarros de BRT) – atualmente existem sistemas de deteção de aproximação do autocarro de BRT à interseção semaforizada que permitem dar prioridade ao mesmo ou reduzir em muito o seu tempo de espera. Claro, que esse sistema ao favorecer o BRT, desconsidera os outros veículos – aspeto por isso a ter em consideração no estudo de tráfego das diversas interseções. É por isso importante que o Estudo de Tráfego abranja já de forma consolidada a semaforização de todo o sistema, e até a forma como o centro de controlo do sistema de BRT interage com o mesmo. Porém, não é só o tráfego veicular que deve ser considerado; caso as estações de BRT sejam centrais e o acesso pedonal às mesmas não seja por passagem pedonal desnivelada (devido a impossibilidade de implantação horizontal e/ou vertical, ou de se assumirem os custos), é necessário considerar também as passadeiras pedonais e os seus semáforos (obrigatórios, pois os utentes vão cruzar as vias de BRT para aceder às estações) em todo o funcionamento da rede. E outros motivos/necessidades podem existir para ser necessário o cruzamento pedonal das vias de BRT, sem que seja o acesso às estações. Recomenda-se sempre que o sistema não seja idealizado de modo a que seja necessário que os peões utilizem uma eventual plataforma/zona central de espera entre vias opostas do BRT, ou nos casos em que seja necessário, a conceção da mesma assuma entradas desalinhadas, área de acumulação de peões adequada e barreiras pedonais na confrontação com as vias de BRT (exceto na largura de atravessamento).
A essencial decisão/opção por um sistema de BRT central ou exterior deve ser suportada pelos dois estudos anteriores. Essa decisão tem muita influência sobre a dimensão do empreendimento e sobre o seu nível de serviço.

Outro aspeto que deve ser cuidadosamente definido no início da conceção é a definição de qual a abrangência urbanística do empreendimento. A implantação de um sistema de BRT ocorre muitas vezes em eixos viários urbanos pré-existentes onde os restantes meios de transporte veiculares veem a sua presença parcialmente ou totalmente restringida. Sendo por isso acompanhada de uma renovação urbana ao longo do mesmo eixo e mesmo de eixos adjacentes. Porém, parte da dimensão dessa renovação urbana pode ser oportunista, o que conduz a um aumento de custos e de prazos que não é desprezável. A renovação urbana pode ocorrer ao nível do paisagismo, do urbanismo, da rede de drenagem pluvial, das restantes infraestruturas enterradas e áreas, etc. Algo como a alteração das sobrelevações da plataforma viária existente, pode conduzir à necessidade de alterar toda a rede de drenagem pluvial e os passeios exteriores, mas mantendo a compatibilidade de cotas para os edifícios existentes. Ao mesmo tempo, existe sempre a questão da permanência ou não de redes de infraestruturas enterradas longitudinais no espaço canal do BRT e até sob as próprias estações, uma vez que obras de reparação ou de ampliação dessas redes não são compatíveis com o funcionamento do BRT. Esta decisão tem fortes impactos nos custos e prazos do empreendimento, e tem também fortes impactos no nível de serviço e de disponibilidade do BRT. Mas caso se opte (em geral corretamente, sobretudo no caso de redes antigas e/ou de materiais frágeis) pela ausência de infraestruturas sob o canal de BRT, entende-se que os custos associados devem/podem ser compartilhados entre entidades/outros projetos pois, conduzem no final a uma renovação com possibilidade de ampliação de redes enterradas, algo que é muito valioso para uma cidade e que só em situações extremas é executado. Outra situação comum relaciona-se com eixos viários com drenagem pluvial deficiente – estando o cais das estações de BRT de “padrão alto” elevadas cerca de 90 centímetros e tratando-se da circulação de autocarros, um nível de água da chuva na plataforma viária de, por exemplo 10 centímetros, não é passível de comprometer as estações e os autocarros, se bem que pode comprometer a chegada e saída das pessoas das estações, reduzir a velocidade dos autocarros, e mesmo conduzir à falha de um sistema de semaforização mal isolado. A melhoria da rede de drenagem é algo que recomendamos sempre, mas os proveitos não são sobretudo para o BRT e os custos devem do mesmo modo ser assumidos e distribuídos.

Um dos grandes motivos de indisponibilidade ou de custos de manutenção do BRT são as reparações do pavimento das suas vias. Um pavimento com conceção adequada e bem executado é essencial sobretudo para a disponibilidade do sistema, velocidade de circulação, segurança, conforto nos autocarros e redução do ruído. A solução de pavimento betuminoso é no geral desaconselhada devido às questões de deformação e de fluência (sobretudo em climas quentes) e ao envelhecimento dos materiais betuminosos. A solução de pavimento de betão (de cimento) é bem recebida desde que bem dimensionada e executada (caso contrário, tem mais problemas que vantagens), porém sofre de deficiências intrínsecas ao nível do conforto e do ruído. Uma solução intermédia interessante diz respeito a um pavimento híbrido do tipo betuminoso, em que a camada de desgaste apresenta uma espessura superior ao normal e textura aberta, sendo a mesma depois impregnada com calda de cimento – esta medida conduz a uma maior rigidez e menor fluência do pavimento. Esta solução híbrida, permite também que ocorram reparações no pavimento, devidas por exemplo a trabalhos associados a infraestruturas enterradas transversais, sem que o pavimento reparado apresente as mesmas heterogeneidades ou problemas que um pavimento de betão apresentaria. Por outro lado, tendo o custo do pavimento do BRT um peso importante, é necessário também otimizá-lo e por isso podem-se estudar soluções em que os pavimentos mais caros (de betão ou híbrido) se aplicam apenas em zonas de curvas e de estações (zona de travagem, de paragem e de aceleração), ou seja, em zonas em que o pavimento é sujeito a forças horizontais relevantes para o seu comportamento, aplicando-se na restante extensão (cerca de 66%) um pavimento betuminoso bem dimensionado.
Um sistema de BRT de padrão elevado funciona baseado em comunicações – comunicações entre autocarros e estações, entre autocarros, e sobretudo todos eles com o Centro de Controlo Operacional (CCO). Para isso tem de ser projetado um adequado sistema de ITS (incluindo: CCO, Datacenter, Sistema de Bilhética, Sistema de Vídeo Monitorização (incluindo das vias de BRT e cruzamentos), Sistema de Gestão de Operação, Rede de Comunicações, etc.). A coluna vertebral desse sistema é o canal técnico localizado em geral no caso de um BRT central no meio das duas vias de BRT, por debaixo do separador central. A dimensão e composição desse canal técnico depende daquilo que terá de comportar e ao que deve dar ligação, e isso depende, é claro, do sistema de ITS, mas também do facto de o canal ser alugado ou não para passagem de cablagens de média a longa distância de outras entidades. Isso permite proveitos adicionais para o sistema, mas a necessidade de prever sub-canais técnicos transversais que permitam a passagem das cablagens do exterior até ao canal técnico central, e a definição de regras e períodos de acesso ao mesmo que têm de ser estritamente observados pelas operadoras locatárias da passagem. É claro que com a possibilidade de proveitos adicionais vem também o risco de comprometimento da infraestrutura de telecomunicações do BRT caso as operadoras locatárias, nas suas intervenções, produzam algum dano nas cablagens e equipamentos da rede do BRT.

Se compararmos um sistema de BRT a um organismo, o Centro de Controlo Operacional (CCO) é o cérebro e a garagem de operação e manutenção os rins – daí percebemos a importância dos dois. Saliente-se, no entanto, que por vezes o CCO está situado dentro de uma das garagens. A garagem (pode no entanto ser mais do que uma, dependendo da dimensão do sistema e do número de rotas) possui todas as componentes necessárias à gestão, manutenção e operação do BRT. Aí é realizado: abastecimento de combustível, manutenção ligeira e pesada, refeitório e balneário (?) de funcionários, estacionamento de autocarros, e na presença do CCO, controlado e gerido todo o sistema. Um bom programa base para cada garagem é essencial para o bom desenvolvimento dos trabalhos. Existem aspetos que podem ir dos mais simples do tipo: Para quantos dias deve existir provisão de combustível?; Deve existir estufa de pintura?; A reparação será ligeira ou também do tipo pesada? Até aos mais complexos: Qual a profundidade da interação do CCO com os autocarros e os semáforos?; Quantos postos de controlo no CCO?; Qual a dimensão do videowall no CCO? A experiência e conhecimento do consultor/projetista e a eventual participação do explorador são aspetos que asseguram o sucesso.
Nem sempre é de facto possível, mas é sempre aconselhado que o explorador do sistema participe na definição pelo menos do estudo base ou do caderno de encargos. Estão em causa aspetos desde os mais específicos como os tecnológicos ou a posição das portas dos autocarros (que têm de ser compatíveis com as portas nas fachadas das estações), até aspetos relacionados com o facto de a cozinha da garagem ter capacidade de produção de refeições ou apenas dar apoio a um sistema baseado em catering. Se bem que existe uma estandardização das alturas dos pisos dos autocarros de BRT, o mesmo não ocorre ao nível das suas portas mesmo que se esteja a falar de uma dimensão de autocarros. E assim sendo, qualquer fachada de BRT (com portas) nunca estará fechada e pronta para construção até que se saiba exatamente quais os autocarros que serão utilizados. E aproveita-se para esclarecer que esta opção inicial influenciará sempre a compra de novos autocarros durante a exploração do BRT, a não ser que se modifiquem as fachadas ou a largura das portas tenha uma tolerância adequada sem comprometer a segurança dos utentes.

Um sistema de BRT é algo que apresenta uma relevância política especial, dada a sua importância para a melhoria da qualidade de vida das populações. Constata-se que os seus prazos de conclusão estão “estranhamente” alinhados com os das consultas públicas/eleições. Porém, estes são projetos muito complexos para os quais contribuem muitos stakeholders e com estudos iniciais, projetos de execução e construção dificilmente são concluídos em quatro-cinco anos. Em face dessa situação, existe por vezes a tendência para construir apenas aquilo que as populações mais veem – ou seja, as estações e vias – sem existir uma preocupação com componentes demorados e dispendiosos, mas essenciais para o funcionamento efetivo do sistema, tais como: garagem(s) de manutenção e Centro de Controlo Operacional (CCO), e até escolha do explorador. Deve-se sempre procurar contribuir de forma positiva para evitar estas tentações através da apresentação de propostas de soluções de controlo da dimensão inicial do empreendimento, relegando componentes não essenciais para 2.ª fase, durante a exploração. Para isso, é necessário saber e conhecer o que pode ficar de fora inicialmente ou definitivamente.
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